Artigo originalmente publicado na revista Princípios.
Por Osvaldo Bertolino
A conquista da Copa de 58 representou o apogeu de um ciclo do futebol brasileiro. A explicação correlaciona fenômenos de ordem variada — da economia, da política, da cultura e da história. No Brasil, há ainda certo distanciamento entre a análise destes fenômenos e o futebol. O escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues, que revolucionou a forma de analisar futebol no Brasil, escreveu, com razão, que não havia um só personagem da nossa literatura que sabia bater um mísero escanteio.
Nelson Rodrigues foi o grande poeta do melhor momento do futebol brasileiro, entre 58 e 70. “O que nós procuramos nos clássicos e nas peladas é a poesia”, insuspeita e absoluta, dizia. Entre a seriedade e a galhofa, analisou o brasileiro. Segundo o escritor, antes de conquistar o primeiro título mundial o brasileiro tinha “alma de vira-lata”.
Mas, com Pelé e Garrincha, o futebol brasileiro perderia sua “humildade deprimente” e ganharia em qualidade. Seria “insolente e vencedor”, como os dois craques fora de série que despontavam. Ninguém melhor do que Nelson Rodrigues soube louvar o futebol popular — segundo ele tão bonito como “uma paisagem de calendário”. Provocador, intitulou-se reacionário, espicaçou a “esquerda festiva”, os “padres de passeata” e as “freiras de minissaia”. E virou símbolo, ainda que incômodo, do conservadorismo.
O escritor criou dezenas de expressões e personagens que ajudaram a formar a mitologia do futebol. Criou o “Sobrenatural de Almeida”, a “Grã-fina das Narinas de Cadáver”, o “Idiota da Objetividade”, o “Narciso às avessas”, o “Príncipe etíope”, o “Sublime crioulo”, a “Lagartixa profissional”, o “Possesso”, o “Quadrúpede de vinte e oito patas” e tantos outros.
Cronista de uma época
Nelson Rodrigues foi o primeiro dos grandes escritores brasileiros a pautar o universo futebolístico. Antes dele, havia poucas menções, em geral depreciativas. Lima Barreto denunciara o “jogo de elite” disputado por “moços ricos” em clubes fechados que não permitiam jogadores negros.
Nelson Rodrigues trouxe o futebol para o centro da cena popular e deu-lhe caráter épico. O futebol em Nélson Rodrigues é arrebatado, grandioso, exagerado. A pátria “calça chuteiras”; “mantos invisíveis pendem do peito do rei Pelé”; o Fluminense “nasce quarenta séculos antes do paraíso”; surge o Fla-Flu e as “multidões despertam”.
Ele foi um cronista de uma época em que o Maracanã recebia freqüentemente mais de 100 mil torcedores, marca hoje raríssima. Chegou a afirmar que a idéia de multidão nasceu no Brasil com a construção do Estádio Mário Filho (nome oficial do Maracanã, homenagem ao seu irmão, o também jornalista Mário Rodrigues Filho). Segundo ele, nem o enterro do Barão de Rio Branco reuniu mais gente do que o Mário Filho para um Fla-Flu.
Pombos da Cinelândia
A respeito de Pelé, Nelson Rodrigues vaticinou-lhe a grandeza em crônica de 1957, quando o garoto começava a brilhar no Santos. Em março de 1958, três meses antes da Copa, publicou a crônica “A realeza de Pelé”, na qual profetizou a conquista do título porque agora, com o rei que dribla os adversários como “quem afasta um plebeu ignaro e piolhento”, os “inimigos tremerão”. Para ele, Pelé era o “sublime crioulo”.
Garrincha também inspirou o cronista. O pacato ponta-direita do Botafogo, a quem os “pombos da Cinelândia e os pardais do boulevard 28 de Setembro chamam de ‘nosso irmão, o Mané’”, seria um predestinado a manter o futebol brasileiro em evidência e a chacoalhar o país, acordando-o para sua grandeza.
O Brasil seria outro se nós, brasileiros, fôssemos como o “anjo das pernas tortas” dentro do campo. Garrincha carregou a seleção para o bicampeonato no Chile, em 1962, e o cronista escreveu: “Deslumbrante país seria este, maior que a Rússia, maior que os Estados Unidos, se fôssemos 75 milhões de Garrinchas.”
Clubes grã-finos
Quando Nelson Rodrigues despontou, no país do futebol não existia um registro histórico e abrangente sobre este esporte. Esta lacuna decorre, obviamente, da forma como nasceu e se desenvolveu o futebol em nosso país. Lima Barreto via o esporte como coisa essencialmente estrangeira. “O futebol é coisa inglesa, ou nos chegou por intermédio dos arrogantes e rubicundos caixeiros dos bancos ingleses, ali, da Rua da Candelária e arredores, nos quais todos nós teimamos em ver lordes e pares do Reino Unido”, escreveu ele na obra Feiras e Mafuás.
A sentença de Lima Barreto não era errada. Na fase em que o futebol se implantou por aqui — entre 1894 e 1920 —, o povo não tinha vez. Para entrar em campo, negros tomavam banho de pó de arroz — como foi o famoso caso de Carlos Alberto, que atraiu para o Fluminense o apelido que conserva até hoje. Na etapa seguinte, o futebol acompanhou a abertura para os que vinham de baixo proporcionada pela revolução de 30. Apareceram Fausto — a “maravilha negra” — e Leônidas da Silva —, o “diamante negro”.
O futebol brasileiro iniciou a sua trajetória para o sucesso quando, no começo do século XX, começou a deixar os clubes grã-finos e espalhar-se por várzeas e agremiações populares. Depois da revolução de 30, emergiu com toda a sua arte. Como o futebol, que se profissionalizou em 33, a literatura e a música popular ganharam impulso e também viveram a sua “fase de ouro”.
Catástrofe nacional
Leônidas da Silva foi o Getúlio Vargas do futebol. Na Copa de 38, ele brilhou e transformou-se no primeiro “garoto propaganda” do futebol brasileiro — anunciando uma marca de cigarro e o chocolate “Diamante Negro”, criado em alusão ao seu apelido. Na década de 30, cerca de 50 mil pessoas, em média, assistiram aos Fla-Flus. O futebol transformou-se em esporte de massa.
O futebol-arte, que já em 1925 deslumbrou a Europa com a excursão do clube Paulistano, no qual jogava o craque Arthur Friedenreich — o time disputou dez jogos e voltou invicto —, começou a aparecer como característica brasileira e tocou o auge com a conquista da Copa de 58. “Hoje, com a nossa impecabilíssima linha disciplinar no Mundial, verificamos o seguinte: o verdadeiro, o único inglês é o brasileiro”, afirmou. Nelson Rodrigues, fazendo um contraponto às palavras de Lima Barreto em Feiras e Mafuás.
Antes, na Copa de 50, o Brasil passou por um trauma definido por Nelson Rodrigues como uma “catástrofe nacional”. “Cada povo tem a sua irremediável catástrofe nacional, algo assim como Hiroxima. A nossa catástrofe, a nossa Hiroxima, foi a derrota frente ao Uruguai, em 1950″, escreveu.
Time fabuloso
A dimensão desta “catástrofe” pode ser medida pela decisão do goleiro Barbosa, que nunca mais quis voltar ao gramado do Maracanã. “Muita gente entrou para a história. Eu jamais sairei da história do futebol brasileiro por causa daquele jogo, em 16 de julho de 1950″, afirmou. “No Brasil, a pena maior é de 30 anos; eu fui condenado à prisão perpétua”, lamentou. O escritor Carlos Heitor Cony escreveu: “Deixei de acreditar em Deus no dia em que vi o Brasil perder a Copa do Mundo (de 50) no Maracanã.”
Logo depois, o jornal Correio da Manhã lançou um concurso, com o apoio da Confederação Brasileira de Desportos (CBD), para a escolha do novo uniforme. A única exigência era que as tonalidades deveriam ser as mesmas da bandeira. O estudante Aldyr Garcia Schlee, à época com 19 anos, tentou inovar. Deu certo. Na Copa de 54, a equipe nacional entrou em campo pela primeira vez de camisa amarela, calção azul e meias brancas — começava a saga do maior símbolo do futebol mundial. E na Copa seguinte, a de 58, começaria a era Pelé e Garrincha.
A conquista da Copa de 58, portanto, tem um simbolismo que representa uma fase da evolução do povo brasileiro. Nos anos 70, quando o país atingiu o auge da regressão imposta pelo golpe de 64, o futebol começou a involuir. Recentemente, em um programa de televisão alguns jogadores da seleção brasileira, que estava em Londres para um amistoso com a seleção sueca para comemorar os 50 anos daquela conquista, disseram que pouco sabiam sobre o time fabuloso de 58.
Futebol-brucutu
O que explica isso? Como dizia Vicente Matheus, o ex-eterno presidente do Corinthians, o difícil, vocês sabem, não é fácil. Há um pouco daquilo que Nelson Rodrigues chamava de falta de caráter — não dos jogadores, evidentemente. “Muitas vezes, é a falta de caráter que decide uma partida”, dizia ele.
Há poucos dias, o jornalista esportivo Juca Kfouri escreveu que a seleção brasileira é uma utopia — só existe nas mentes encaracoladas da Confederação Brasileira de Futebol (CBF). A seleção já não joga no Brasil, não treina no Brasil, não mora no Brasil. “O verde e amarelo é apenas uma jogada de marketing”, escreveu.
De fato, com a nova configuração do poder futebolístico extra-campo, saiu de cena o jogador respeitado pelo seu talento para entrar o atleta — ou técnico — temido por sua força, por seus gritos. O futebol-brucutu é regido pela égide da ciranda financeira. Um título futebolístico tem papel tão derivativo quanto mudanças na cotação do peso argentino em relação ao dólar no futuro ou a taxa de juros embutida numa ação da Petrobras.
Condição nacional
Outro problema é a exposição de jogadores na seleção brasileira com objetivos comerciais. Qualquer perna-de-pau, antes mesmo de se firmar num clube brasileiro já projeta ir para a Europa pensando em jogar na seleção. O futebol-força tirou a arte de campo para entrar em cena os negócios.
O futebol, “religião laica do povo” na definição do historiador Eric Hobsbawn, reflete a cultura de um tempo. A conquista da Copa de 58 expressou uma fase transição do próprio país.
Nelson Rodrigues explicou bem o significado daquela conquista. “Já ninguém mais tem vergonha da sua condição nacional. E as moças na rua, as datilógrafas, as comerciárias, as colegiais, andam pelas calçadas com um charme de Joana d’Arc. O povo já não se julga mais um vira-latas. Sim, amigos: o brasileiro tem de si mesmo uma nova imagem. Ele já se vê na generosa totalidade de suas imensas virtudes pessoais e humanas”, escreveu.
Aquelas “virtudes” tiveram como expressão máxima a dupla Pelé e Garrincha. Juntos em campo por 40 vezes em jogos da seleção, jamais foram derrotados — a seleção ficou invicta por13 jogos. O auge da dupla foi a conquista da Copa de 62. Na Copa de 66, a única vitória (3 a 1 sobre a Bulgária) marcou o fim da parceria mais bem-sucedida na história dos mundiais.
Problema do racismo
Na Copa de 70, o ciclo iniciado em 58 chegou ao fim. Ao som daquela musiquinha que, segundo João Saldanha, dizia que o negócio era para frente mas andava para trás, a seleção brasileira conquistou o tri no México. O título foi transformado em propaganda do regime militar. Antes do embarque, o comunista João Saldanha foi afastado do comando da seleção. Em seu lugar assumiu Zagallo, o ponta-esquerda do time campeão na Copa de 58, que teria aceitado a convocação de Dario, o Dadá Maravilha, por imposição do presidente Médici.
Em 1974, a seleção brasileira mostrou os sinais visíveis de que aquele ciclo se encerrara. Na Copa de 78, na Argentina, o poder autoritário que ainda mandava no país deu o tom. Os dirigentes da CBD eram todos militares ligados ao regime. O presidente era o almirante Heleno Nunes, que dispensou o competente e humilde Osvaldo Brandão para entronizar o capitão Cláudio Cotinho como técnico. Osvaldo Brandão falava a linguagem dos jogadores, que era a do povo; o capitão falava a língua do regime.
Voltou a se manifestar também o velho problema do racismo — que a rigor nunca desaparecera. Quando seleção de Coutinho desembarcou na Argentina, um repórter lhe perguntou: “¿Pero, dónde están los negritos? Cuando Brasil venia com unos negros bicudos jugava bien; ahora vienen unos rubios de pelo largo y no juegan nada.” Mas eram também tempos de contestação à ditadura militar inclusive no futebol.
Jogadas mágicas
Em outubro de 1977, o presidente do Fluminense, Francisco Horta, disse que a causa da decadência do futebol era a sua militarização. Às vésperas da Copa de 78, o centroavante do Atlético Mineiro, Reinaldo, defendeu a anistia, as eleições diretas e uma melhor “divisão do bolo”. Dois dias depois, o almirante Heleno Nunes, presidente da CBD, disse que Reinaldo não iria à Argentina. Foi, mas sob severa vigilância.
No Copa de 82, a CBF — ex-CBD — iniciou a fase da “modernização”, a do futebol-business. E chegamos à utopia descrita por Juca Kfouri. Mas, olhando para trás, é possível afirmar que o futebol neoliberal logo será esquecido.
Não é possível conceber como eterna a idéia de que não existirão mais aquelas jogadas mágicas, em que o futebol encontra a arte; aqueles lances que ninguém sabe explicar como acontecem, que exigem uma reflexão a respeito, um esforço qualquer de fruição, de tradução do que é rarefeito, de compreensão daquilo que não é imediato, berrante, visível. Seria muito pouco para a grandeza do futebol brasileiro e do ser humano.
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separados foram geniais, juntos foram invencíveis. Se vivessemos em um país sério, Pelé Eterno por exemplo, estaria para sempre em cartaz, seria vitalicio
Caro amigo,ouvi rumores de que garrincha teria feito parte do grupo dos campeões de 1970. Como um reconhcimento pelas copas anteriores,sei que em 1970 garrincha não teria mais condições fisicas. S ei que ele não jogou pois jairzinho arrebentou aquela copa. Mais gostaria de saber se ele(garrincha) estava no mexico com a seleção…….agradeço o esclarecimento
Garrincha tava em Roma fugindo da ditadura militar
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2014/05/1459050-a-copa-que-nao-comemorei.shtml